Esperpento no bairro de Salamanca.

Esperpento como ridiculez, desatino ou absurdo, do que muito sabia e deixou escrito Valle Inclán. Não pensei que chegaria a ser testemunha da realidade esperpéntica de pessoas que se consideram de crase superior, econômica e especialmente social, comportando-se como chusma.

É curioso ver a toda essa gente chamada de ordem, seria e circunspecta, que olha habitualmente as manifestações populares reivindicativas de direitos cívicos e sociais com indiferença, superioridade e incluso asco, afeitas a viver na prebenda e na comodidade das suas economias folgadas, como podem invadir a rua desordenadamente, alvorotando, incumprindo as normativas governamentais e de saúde, golpeando sinais de tráfico e ruído de caçulas, desconformes com o confinamento, que afeta a toda a Comunidade de Madrid. Comunidade que por certo, sem intencionalidade, levou contágio a todo o litoral fugindo do foco infecioso.

Não critico a opinião e a protesta, pois são direitos democráticos, mas sempre que se realizem dentro das normas previstas especialmente para estes tempos de pandemia nos que os contágios não se frenam nem reduzem. O realmente grotesco é que o alvoroto tumultuário se produz no franquista bairro de Salamanca madrilenho, o de maior índice de riqueza e nível social, no que já na assonada franquista nunca caiam bombas do exército “nacional”(pois respeitavam as crases pudentes), porque seus privilegiados vizinhos sentem-se oprimidos e decidem iniciar a revolução saltando a lei ao berro de “libertad”. Eles que viveram em total excepcionalidade durante a Ditadura e que nunca sentiram opressão numa Espanha órfã de direitos cívicos e humanos, que nunca censuraram a Billy’s el Niño nem outros torturadores, que inda hoje defendem os crimes de uma guerra cruenta e uma pós-guerra de ódios e revanches desatadas, de morte, de temor, de fome e de ignomínia e pretendem retornar a esse passado realmente opressivo para a cidadania em geral, no que só os mais poderosos gozavam de todo tipo de liberdade incluso para dominar ás classes populares. É seu conceito de liberdade, a própria da direita neoliberal ou da extrema direita, o livre comercio e seus privilégios.

São os mesmos que criticavam os “escraches” de gentes que reclamavam modificações legislativas para adequar seus direitos constitucionais a uma vivenda digna á realidade; os mesmos que criticavam as manifestações para recuperar direitos tanto econômicos como cívicos.

Pois agora já os vemos, metidos numa confusa turbamulta de berros, ruídos e griterio, fazendo “escraches” que eles no seu dia criticaram sem piedade, tanto os senhores de Vox como os do PP e incluso Ciudadanos, quando as vítimas eram membros do PP e que agora, numa atitude que não duvido em qualificar de ódio, reproduzem; há uma sensível diferença, aqueles lutavam por um teito, uma vivenda na que acolher-se, aquecimento no inverno e, especialmente, alimentos e estes fazem-no por rações políticas, alentados por uma direita desnorteada numa comunidade que teve o maior número de infetados e mortos e contra uma normativa sanitária que se demonstrou eficaz. E todo envolvidos na bandeira espanhola, recavando para sim o nacionalismo patriótico e negando a psoes e comuns a qualidade e sentimento de espanhóis. Não há bons nem maus; é uma Espanha de sentimento imperial única, invejosa e malévola, que se destroça internamente, mas com os mesmos projetos, e há outras nações peninsulares que fogem de aquelas liortas para tratar de ser elas mesmas.

Esperpento ou carnavalada dos que cheios de raiva perderam o sentido do ridículo e tratam de derrubar ao contrário, que tomou umas medidas sanitárias que resultarem eficazes, inda a costa de um repunte da pandemia entre seus vizinhos. Vemos a diferença de proceder entre as duas Comunidades com maior número de infetados e de mortos: Madrid rebelando-se contra as normas sanitárias mais razoáveis e Barcelona, assumindo a normativa sanitária estabelecida; claro que em Catalunya impera o “seny”.

Advogado. Ourense - Vigo - Porto